domingo, 29 de abril de 2007

Nouvelle Vague

Na filmoteca de Madrid há uma fila de cem metros, ou seja cerca de duzentas pessoas que bem encostadinhas á parede dão a volta ao quarteirão. Cinquenta metros de bizarro freak, punk e travesti com outro tanto de velharia franquista. O choque acima de evidente, não existe, e é que esta gente encontra-se aqui para ver ou rever Godard que ao que parece transcende ou quebra ou mesmo faz comédia de todo o resto vestígio uivante.
Mas antes de Godard, esta casa que é a casa de qualquer bom cinéfilo que por aqui se passeie. Aos interessados o lugar é Cine Doré e fica amparado na Calle Santa Isabel nº3, as sessões correm de forma quase ininterrupta entre as 17 e as 23 horas por duas (oníricas) salas de projecção. O espaço garante também livraria e cafetaria, aqui a entrada é livre e onde não o é, é como se fosse (2,50€).
Para o turista desamparado para quem Madrid é Sol e Gran Via e o cinema é rotulado ás pipocas Lusomundo recomendo Lavapiés, cheira a caril e também a coisa ilícita, há claustrofobia nas ruas, há pretos, chinos,índios…tudo em habitat natural e claro a filmoteca, Griffith, Chaplin Lubitch, Fassbinder,Tati, Fleicher, Renoir, Bergman, Welles, Godard e todas essas pronunciações que só de nome provocam uma súbita erecção auditiva.
O filme em questão é “Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution”, de Jean-Luc Godard, 1965. A coisa começa a negro com flashes de luz ofuscante enquanto uma música estridente marca este pulso luminoso e então que uma voz grotesca (num francês muito sugestivo), doente, declara: “há momentos em que a realidade se torna demasiado complicada para a comunicação oral, então a legenda dá-lhes uma forma com que se possam estender por todo o mundo”, isto ou qualquer coisa de parecido.
Alphaville é a estória do agente especial Lemmy Caution interpretado pelo actor Eddie Constantine, um recuperado Bogart, que viaja no seu Ford branco até á capital de um planeta distante (Paris) com a missão de trazer de volta o cientifico Von Braun. O científico foi no entanto naturalizado por si próprio criando o Alpha 60, um computador que controla Alphaville, a isto junta-se Anna Karina como Natacha Von Braun, filha do científico e programadora (de segunda classe) de Alpha 60 a quem Lemmy ama.
No que interessa dizer: não tenho ainda descodificado todo o trabalho de Godard, em parte porque é raro reencontra-lo no grande ecrã, em parte porque é difícil encontra-lo á venda em qualquer tenda. O meu percurso até este momento resume-se a “la Chinoise”, “le petit Soldat” e”Tout va Bien”, deu no entanto para perceber que o senhor é esquerdista, impulsionador e cocreador da Nouvelle Vague, e muito para além de qualquer destas duas verdades um mito na história do cinema, não um mito qualquer mas Godard assim como Buñuel ou no meu caso Pasolini (incrivelmente todos esquerdistas activos). Onde quero chegar é que não será preciso perceber muito do trabalho do autor, ou bastará perceber de nouvelle vague, para entender que Alphaville é um caso á parte.
O filme é uma incursão no género da ciência ficção não muito longe de outros como Metrópolis (expressionista) ou Blade Runner (Cyberpunk), cada um com a sua visão distópica de uma sociedade desumanizada produto do avanço tecnológico.
Há também uma influência directa de 1984, isto materializado numa bíblia que não é afinal mais que um dicionário onde a palavra é a todo o custo controlada pelo Alpha 60.
O que mais perturba a quem está familiarizado com isso da nouvelle vague, ao menos na sua forma inicial, é a oposição que aqui aparece ao habitual diálogo da Paris postal em favor de uns cenários modernistas, muito estilizados, tudo combinado com um néon em forma de flechas e outras indicações, ou contra indicações. A fotografia a branco e preto com umas surpresas a negativo, fantástica, arremessa ainda mais para a persuasão do abstracto a que se assiste.
A terminar acrescento a impressão esquisita que me provocou a forma de humor que é utilizada em Alphaville, melhor ver para comentar.

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